“Quinze versos de despertar” – Bodhapañcadaśikā

Traduzo aqui a obra atribuída a Abhinavagupta, dedicada a instruir com precisão e objetividade os discípulos iniciantes, que consiste de 15 versos – daí seu nome bodha-pañcadaśikā, “Quinze versos de despertar”. É uma síntese  iniciática do sistema filosófico do śivaiśmo monista da Caxemira, pelo qual se expõe a unidade pertinente à dualidade de śiva-śakti, que permeia toda a existência. Integram-se também os conceitos de prisão (bandha) e libertação (mokṣa) como aspectos externos à realidade mais sublime. Na realidade mais sublime, ou elevada, nomeada como śiva, não ha tal oposição. Dessa maneira, a meta a ser buscada é o ideal do jīvanmukta, que é a libertação em vida, uma condição que dispensa a oposição entre “liberto e não-liberto”.

Abhinavagupta fala-nos sobre a origem do universo. Aqui não existe a distinção convencional entre causa e efeito, a consciência divina gera e ao mesmo tempo é o universo. A metáfora do espelho é uma boa forma de entender esse fato: o mundo é reflexo do divino Bhairava. E sobre que superfície se dá o reflexo? Sobre o próprio Bhairava, por meio de sua potência, ou śakti.  Assim todos os princípios relacionados ao que chamamos de criação e dissolução são ações simultâneas e eternas da consciência divina, que está presente nos níveis mais sutis e mais densos da existência. Nos seus níveis mais sutis, Bhairava é inatingível pela consciência individual. A consciência individual não pode perceber Bhairava, pois ele está além dos objetos de percepção. É possível, porém, identificar-se com a consciência divina, isto é, tornar-se Bhairava.

Nos “Quinze versos de Despertar”, faz-se perceber que, existindo muitas criações,  muitos mundos, o apego à  dimensão restrita resulta no apequenamento da consciência. A cognição e também o prazer e a dor são inerentes ao estado de consciência restritivo.  Por oposição, a consciência pode ser proporcional à magnitude do universo, que se mostra múltiplo e fragmentário devido ao próprio intento de Śiva. Quem se apega apenas à dimensão restrita sofre as dores do medo – pois seu vir-a-ser estará limitado à visão projetdada pelo saṃsāra, que é a roda dos renascimentos sucessivos. No outro lado, estão a graça, o mestre e a escritura, como indutores da transformação da consciência, que poderá, enfim, notar-se maior, plena, idêntica à do ser divino. E, nesse estado, percebe-se então que não existem prisão ou libertação, visto que tudo é Śiva, todos somos Śiva, e Śiva nunca esteve preso ou liberto – ele é a totalidade. Surge daí o estado de “libertação em vida”, não há afastamento do mundo, visto que o mundo é o próprio corpo do ser divino.

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Tanto as luzes como as trevas são dotadas da natureza desse resplendor que não pode ser limitado, que é único, intrínseco, e em cujo interior estão tanto as luzes como as trevas. (1)

Ele é parameśvara, que é a essência de todos os seres, a origem deles e detentor da śakti, a qual é constituída por sua potência. (2)

E a śakti não concebe como distinto aquele que possui a śakti, de modo que um sempre será o cerne do outro, tal como o fogo e a combustão. (3)

Ele é o deus Bhairava, conhecido por manter o cosmo. Por meio de sua śakti, faz-se completamente refletido no espelho de si mesmo. (4)

Ele possui a deusa suprema, a qual deseja tocar a sua própria natureza. E, em todos os seres, ela manifesta sua plenitude, nem em falta, nem em excesso. (5)

Esse deus deseja permanentemente o sentimento de diversão, estabelecendo, onipresente, as variadas criações e dissoluções simultâneas. (6)

É dotado de um poder de ação inatingível, que está além de tudo, possuindo assim autonomia (svatantra), soberania e inteligência. (7)

A cognição limitada é o que caracteriza o ignorante, e a partir de um intelecto assim caracterizado, seja do ignorante ou de outros, não se pode alcançá-lo. (8)

Dessa forma, pertence ao princípio de autonomia (svatantra) o dualismo dos que experimentem a śakti como inata e também as criações e dissoluções, que ocorrem no próprio ser dele, mantidas por sua própria natureza. (9)

Dentre elas (criações), há uma variedade infindável, seja vertical ou horizontal. E uma parte delas são os mundos, os quais produzem o prazer, a dor e a cognição. (10)

O desconhecimento disso se explica em razão da autonomia (svātantrya) de Śiva. Trata-se de fato do saṃsāra, que traz o estado de temor aos tolos. (11)

Pela graça de Śiva, ou também pelo ensinamento do mestre ou pela escritura que versa sobre Parameśa, é alcançado o conhecimento da essência de Śiva, que se ensina como sendo a libertação (mokṣa), o estado de parameśa, a completude e a libertação em vida (jīvanmukti) dos sábios. (12-13)

A prisão e a libertação não se distinguem, provêm da essência da Parameśa, e tampouco há diferenciação com relação a vós, no estado de parameśvara. (14)

E assim Bhairava (Śiva) permanece como a natureza de todos os seres, dotado dos três lótus que figuram no tridente: a potência do desejo (icchā), a da atividade (kalā) e a do conhecimento (jñāna). (15)

“Para que os alunos de mente imatura aprendam com rapidez, esses quinze versos foram compostos por Abhinavagupta.”

* A tradução e o comentário de Swami Lakshman Joo, publicados em Self-Realization in Kashmir Shaivism, serviram de amparo para o entendimento do texto sânscrito. E tanto a versão sânscrita publicada nesse livro como a digitalizada por Marino Faliero serviram para minha leitura e estudo.

ॐ अनस्तमितभारूपस्तेजसां तमसामपि |
य एकोऽन्तर्यदन्तश्च तेजांसि च तमांसि च ||१||
oṃ anasta-mita-bhā-rūpas tejasāṃ tamasām api |
ya eko ‘ntar yad antaś ca tejāṃsi ca tamāṃsi ca ||1||

स एव सर्वभूतानां स्वभावः परमेश्वरः |
भावजातं हि तस्येव शक्तिरीश्वरतामयी ||२||
sa eva sarva-bhūtānāṃ svabhāvaḥ parameśvaraḥ |
bhāva-jātaṃ hi tasyeva śaktir īśvaratā-mayī ||2||

शक्तिश्च शक्तिमद्रूपाव्यतिरेकं न वाञ्छति |
तादात्म्यमनयोर्नित्यं वह्निदाहिकयोरिव ||३||
śaktiś ca śaktimad rūpāvyatirekaṃ na vāñchati |
tādātmyam anayor nityaṃ vahni-dāhikayor iva ||3||

स एव भैरवो देवो जगद्भरणलक्षणः |
स्वात्मादर्षे समग्रं हि यच्छक्त्या प्रतिबिम्बितम् ||४||
sa eva bhairavo devo jagad-bharaṇa-lakṣaṇaḥ |
svātmādarśe samagraṃ hi yacchaktyā pratibimbitam ||4||

तस्यैवैषा परा देवी स्वरूपामर्शनोत्सुका |
पूर्णत्वं सर्वभावेषु यस्या नाल्पं न चाधिकम् ||५||
tasyaivaiṣā parā devī svarūpāmarśanotsukā |
pūṛṇatvaṃ sarva-bhāveṣu yasyā nālpaṃ na cādhikam ||5||

एष देवोऽनया देव्या नित्यं क्रीडारसोत्सुकः |
विचित्रान्सृष्टिसंहारान्विधत्ते युगपद्विभु: ||६||
eṣa devo ‘nayā devyā nityaṃ kriḍā-rasotsukaḥ |
vicitrān sṛṣṭi-saṃhārān vidhatte yugapad vibhuḥ ||6||

अतिदुर्घटकारित्वमस्यानुत्तममेव यत् |
एतदेव स्वतन्त्रत्वमैश्वर्यं बोधरूपता ||७||
atidurghaṭakāritvam asyānuttamam eva yat |
etad eva svatantratvam aiśvaryaṃ bodha-rūpatā ||7||

परिच्छिन्नप्राकाशत्वं जडस्य किल लक्षणम् |
जडादिविलक्षणो बोधो यतो न परिमीयते ||८||
paricchinna-prākāśatvaṃ jaḍasya kila lakṣaṇam |
jaḍādi-vilakṣaṇo bodho yato na parimīyate ||8||

एवमस्य स्वतन्त्रस्य निजशक्त्युपभेदिनः |
स्वात्मगाः सृष्टिसंहाराः स्वरूपत्वेन संस्थिताः ||९||
evam asya svatantrasya nija-śakty-upabhedinaḥ |
svātmagāḥ sṛṣṭi-saṃhārāḥ svarūpatvena saṃsthitāḥ ||9||

तेषु वैचित्र्यमत्यन्तमूर्ध्वस्तिर्यगेव यत् |
भुवनानि तदंशश्च सुखदुःखमतिभवः ||१०||
teṣu vaicitryam atyantam ūrdhvas tiryag eva yat |
buvanāni tad-aṃśaś ca sukha-duḥkha-mati-bhavaḥ ||10||

यदेतस्यापरिज्ञानं तत्स्वातन्त्र्यं हि वर्णितम् |
स एव खलु संसारो जडानां यो विभीषकः ||११||
yad etasyāparijñānaṃ tat-svātantryaṃ hi varṇitam |
sa eva khalu saṃsāro jaḍānāṃ yo vibhīṣakaḥ ||11||

तत्प्रसादरसादेव गुर्वागमत एव वा |
शास्त्राद्वा परमेशस्य यस्मात्कस्मादुपागमतम् ||१२||
tat-prasāda-rasād eva gurvāgamata eva vā |
śāstrād vā parameśasya yasmāt kasmād upāgamatam ||12||

यत्तत्त्वस्य परिज्ञानं स मोक्षः परमेशता |
तत्पूर्णत्वं प्रबुधानां जीवन्मुक्तिश्च सा स्मृता ||१३|
yat tattvasya parijñānaṃ sa mokṣaḥ parameśatā |
tat-pūrṇatvaṃ prabudhānāṃ jīvanmuktiś ca sā smṛtā ||13||

एतौ बन्धविमोक्षौ च परमेशस्वरूपतः |
न भिद्येते न भेदो हि तत्त्वतः परमेश्वरे ||१४||
etau bandha-vimokṣau ca parameśa-svarūpataḥ |
na bhidyete na bhedo hi tat-tvataḥ parameśvare ||14||

इत्थमिच्छाकलाज्ञानशक्तिशूलाम्बुजाश्रितः |
भैरवः सर्वभावानां स्वभावः परिशील्यते ||१५||
ittham icchā-kalā-jñāna-śakti-śūlāmbujāśritaḥ |
bhairavaḥ sarva-bhāvānāṃ svabhāvaḥ pariśīlyate ||15||

सुकुमारमतीञ्शिष्यान्प्रबोधयितुमञ्जसा |
एमेऽभिनवगुप्तेन श्लोकाः पञ्चदशोदिताः ||
sukumāra-matīñ śiṣyān prabodhayitum añjasā |
eme ‘bhinavaguptena ślokāḥ pañcadaśoditāḥ ||

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