Nāḍī-śodhana, “purificação dos canais”

Seguem 3 instruções dadas em textos antigos de Haṭhayoga.

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Haṭhayogapradīpikā

baddhapadmāsano yogī prāṇaṃ candreṇa pūrayet |
dhārayitvā yathāśakti bhūyaḥ sūryeṇa recayet ||2.7||
prāṇaṃ sūryeṇa cākṛṣya pūrayed udaraṃ śanaiḥ |
vidhivat kumbhakaṃ kṛtvā punaś candreṇa recayet ||2.8||
yena tyajet tena pītvā dhārayed atirodhataḥ |
recayec ca tato’nyena śanair eva na vegataḥ ||2.9||
prāṇaṃ ced iḍayā piben niyamitaṃ bhūyo’nyayā recayet
pītvā piṅgalayā samīraṇam atho baddhā tyajed vāmayā |
sūryacandramasor anena vidhinābhyāsaṃ sadā tanvatāṃ
śuddhā nāḍigaṇā bhavanti yamināṃ māsatrayād ūrdhvataḥ ||2.10||
prātarmadhyandine sāyamardharātre ca kumbhakān |
śanair aśītiparyantaṃ caturvāraṃ samabhyaset ||2.11||

Posicionado no padmāsana, o yogue deve inalar o ar com a Lua, e, mantendo o quanto puder, deve exalar com o Sol. (7) Trazendo o alento com o Sol, deve encher aos poucos o peito. Fazendo uma retenção de modo adequado, novamente deve exalar com a Lua.(8) Tomando pela que largou, deve manter com muita firmeza e então deve exalar pela outra vagarosamente e sem pressa. (9) Quando o prāṇa é absorvido pela iḍā (via esquerda), é mantido e depois exalado pelo outra via. Sendo o alento absorvido pela piṅgalā (direita), é então retido e eliminado pelo canal esquerdo. Deve-se manter a prática de acordo com esse método do Sol e da Lua de modo que o conjunto das nāḍīs do praticante há de se tornar puro após três meses. (10) Gradualmente, deve-se praticar os kumbhakas aos limites de 4 a 8 tempos, pela manhã, ao meio-dia, pelo anoitecer e à meia-noite. (11)

Observações:

O que se destaca, nesta orientação, são as expressões “deve-se inalar com a Lua”, candreṇa pūrayet, e “deve-se exalar com o Sol”, sūryeṇa recayet. Esse tratamento simbólico indica que o procedimento envolve uma percepção que ultrapassa o processo mecânico de “alternância das narinas”. Trata-se, assim, de uma instrução que sugere que o adepto deve estar plenamente ativo enquanto faz as inspirações e as expirações, no sentido de manter-se atento aos seus elementos lunares e solares de seu corpo enquanto realiza a prática.

Por essa razão, nāḍī-śodhana é muito mais do que simplesmente deixar o ar entrar e sair por uma narina e por outra. É de importância fundamental que haja o estado de presença, de percepção corporal e das visualizações relacionadas à Lua e ao Sol.

Quanto à técnica em si, nota-se que a prática aqui proposta é relativamente simples, possuindo dois elementos básicos, alternância e a retenção com os pulmões cheios.

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Śivasaṃhitā

suśobhane maṭhe yogī padmāsanasamanvitaḥ |
āsanopari saṃviśya pavanābhyāsam ācaret ||3.22||
samakāyaḥ prāñjaliś ca praṇamya ca guruṃ sudhīḥ |
dakṣe vāme ca vighneśaṃ kṣetrapālāmbikāṃ punaḥ ||3.23||
tataḥ svadakṣāṅguṣṭhena nirudhya piṅgalāṃ sudhīḥ |
iḍayā pūrayed vāyuṃ yathāśaktyā tu kumbhayet ||3.24||
tatas tyaktvā piṅgalayā śanair eva na vegataḥ |
punaḥ piṅgalayāpūrya yathāśaktyā ca kumbhayet ||3.25||
idayā recayed dhimān na vegena śanaiḥ śanaiḥ |
evaṃ yogavidhānena kuryād viṃśati kumbhakān ||3.26||
sarvadvandvavinirmuktaḥ pratyahaṃ vigatālasaḥ |
prātaḥkāle ca madhyāhne ca sūryāste cārdharātrake |
kuryad evaṃ caturvāraṃ kaleṣv eteṣu kumbhakān ||3.27||
itthaṃ māsatrayaṃ kuryād anālasyo dine dine |
tato nāḍīviśuddhiḥ syād avilambena niścitam ||3.28||

Em um belo retiro, o yogue deve acomodar-se sobre um assento, sentado em padmāsana, e realizar a prática do alento (pavanābhyāsa). (22) Com o corpo equilibrado, o gesto de añjali (palmas das mãos unidas), o sábio deve reverenciar o guru, bem como Vighneśa (Gaṇeśa) no lado direito e Kṣetrapāla (Śiva) e Āmbikā (Pārvatī) no lado esquerdo. (23) E assim, com o dedo da mão direita, o sábio fecha a piṅgalā (narina direita) e inala o alento com a iḍā (esquerda), retendo-o o quanto for capaz. (24) Então, soltando por piṅgalā (direita) vagarosamente e sem pressa, inala pela piṅgalā (direita) e retém o quanto for capaz. (25) O sábio deve exalar pela iḍā (esquerda), sem pressa, lenta, lentamente. E, assim, segundo a instrução do yoga, deve realizar 20 retenções. (26) Sem fadiga e transcendendo as dualidades, deve-se praticar esses kumbhakas (prāṇāyāma) quatro vezes ao dia: pela manhã, pelo meio-dia, ao pôr-do-Sol e à meia-noite. (27) É certo que aquele que pratica com vigor durante três meses, diariamente, obterá sem demora a purificação das nāḍīs (nāḍīśuddhi). (28)

Observações: Nessa instrução, ocorre uma ritualização da prática, sugerindo que o adepto faça reverência ao seu mentor, e aos deuses relacionados às laterais. Com essa sugestão, cria-se uma sensibilização do corpo enquanto microcosmo que irá identificar-se com o macrocosmo.

É de se notar que o comando utiliza os termos “pela iḍā” ou “pela piṅgalā”, quando pede que se inspire ou expire. Ou seja: trata-se de absorver o alento, isto é, de integrá-lo com uma ou outra nāḍī. Como fazer isso? Visualizando, sentindo e permitindo que a alternância promova experiências distintas de um lado e de outro. A idéia da purificação contém também o sentido de sutilizar a percepção que o adepto tem de suas laterais, levando-o a um estado que permite que ele reconheça que é formado por essa dualidade.

Quanto à técnica, a instrução sugere a alternância e a retenção com o ar. Nota-se uma diferença material em relação à instrução anterior: pede-se que o adepto utilize as mãos para o bloqueio das nāḍīs. Na anterior, esse gesto pode estar subentendido ou pode haver a idéia de que a prática pode acontecer apenas com o controle interno.

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Gheraṇḍasaṃhitā

upaviśyāsane yogī padmāsanaṃ samācaret |
gurvādinyāsanaṃ kṛtvā yathaiva gurubhāṣitam |
nāḍīśuddhiṃ prakurvīta prāṇāyāmaviśuddhaye ||5.38||
vāyubījaṃ tato dhyātvā dhūmravarṇaṃ satejasam |
candreṇa pūrayed vāyuṃ bījaṣoḍaśakaiḥ sudhī ||5.39||
catuḥṣaṣṭyā mātrayā ca kumbhakenaiva dhārayet |
dvātriṃśanmātrayā vāyuṃ sūryanāḍyā ca recayet ||5.40||
utthāpyāgniṃ nabhimūlād dhyayet tejo ‘vanīyutam |
vahnibījaṣoḍaśena sūryanāḍyā ca pūrayet ||5.41||
catuḥṣaṣṭyā mātrayā ca kumbhakenaiva dhārayet |
dvātriṃśanmātrayā vāyuṃ śaśināḍyā ca recayet ||5.42||
nāsāgre śaśadhṛgbimbaṃ dhyātvā jyotsnāsamanvitam |
ṭhaṃbījaṣoḍaśenaiva iḍayā pūrayen marut ||5.43||
catuḥṣaṣṭhyā mātrayā ca vaṃbījenaiva dhārayet |
amṛtaplāvitaṃ dhyātvā nāḍīdhauti vibhāvayet |
dvātriṃśena lakāreṇa dṛḍhaṃ bhāvyaṃ virecayet ||5.44||
evaṃ vidhāṃ nāḍīśuddhiṃ kṛtvā nāḍīṃ viśodhayet |
dṛḍho bhūtvāsanaṃ kṛtvā prāṇāyāmaṃ samācaret ||5.45||

O yogue deve assumir seu assento e posicionar-se em padmāsana. A seguir, realizar a instauração do guru, e outros ritos, feitos da forma ensinada por ele, para que possa fazer a “purificação dos condutos” (nāḍīśuddhi) com o objetivo de purificar-se para a prática do prāṇāyāma. (38) Meditando sobre o bīja do ar (yam), com coloração de fumaça reluzente, o sábio deve inalar o ar pela nāḍī da Lua durante 16 repetições desse bīja. (39) Deve sustentar a retenção (kumbhaka) por 64 repetições e exalar o ar pelo Sol durante 32 repetições. (40) Deve atiçar o fogo no umbigo, meditar nesta luz em conjunção com o elemento terra e inalar com a nāḍī do Sol durante 16 repetições. (41) Deve sustentar a retenção (kumbhaka) por 64 repetições e exalar o ar pela nāḍī da Lua por 32 repetições. (42) Meditando na orbe da Lua, envolvida por luz na ponta do nariz, deve inalar o alento durante 16 repetições do bīja “ṭhaṃ” pela nāḍī iḍā. (43) Deve-se sustentar por 64 repetições, com o bīja “vaṃ”. Visualizando um banho de néctar da imortalidade, deve meditar na limpeza das nāḍīs e, durante 32 repetições do som “laṃ”, deve exalar, intensificando a visualização. (44) Procedendo segundo essa instrução de “purificação das nāḍīs” (nāḍīśuddhi), deve-se assim purificá-las. Mantendo-se firme, realizando a postura, deve então realizar o prāṇāyāma. (45)

Observações: Como no anterior, ritualiza-se a prática.

Quanto à técnica, o destaque aqui é a precisão do ritmo: 1:4:2 na inspiração (1), retenção com ar (4) e expiração (2). O diferencial é a sugestão de bījas (mantras) na marcação do tempos e de elementos de visualização.

Visualização Inspiração Retenção Expiração
Fumaça 16 yaṃ 64 yaṃ 32 yaṃ
Fogo/terra 16 *raṃ 64 *raṃ 32 *raṃ
Lua 16 ṭhaṃ 64 vaṃ 32 laṃ

*raṃ, bīja do fogo, não é mencionado.


 

10 thoughts on “Nāḍī-śodhana, “purificação dos canais”

    • Oi, Leonardo, a śivasaṃhitā tem perto de 650 ślokas, num total de cinco capítulos, com essa distribuição:

      1. jīva, 99 ślokas
      2. jñāna, 57 ślokas
      3. abhyāsa, 115 ślokas
      4. mudrā, 111 ślokas
      5. dhyāna, 260 ślokas

      abraço
      e namastê!

  1. Muito bom João. Fiquei conhecendo seu site através da Annabella Magalhães. Esse tema em especial é muito interessante. Sou professor de Dakshina Tantra e aluno do professor Paulo Murilo Rosas. Na nossa prática utilizamos muito esse pranayama e acrescentaria que a relação das narinas direita e esquerda com as nadis pingala e ida não é apenas psicológica, mas ao usarmos esse pranayama estamos atuando diretamente nesses canais sutis, visando equilibrar os aspectos masculino e feminino da nossa personalidade.
    Obrigado por disponibilizar essas ricas e valiosas informações e traduções.
    Grande abraço
    Ricardo Coelho

    • Olá, Ricardo, prazer conhecê-lo, e tb saber de seu trabalho.
      Fico feliz em estar contribuindo de alguma forma.
      Grato pela visita e pelo comentário.
      Um abraço e namaste!

  2. Meu Deus!… Isso é a própria integração da anima e do animus, não é?? Isso é realmente INFINITAMENTE mais que inspirar por uma narina e expirar pela outra!…

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