Antologia para meditação II

As duas faces da Realidade, Śiva e Śakti, são indissociáveis. São os princípios presentes em tudo o que há no universo, isto é, o poder de perceber, o ato de percepção e o objeto percebido. Separa-se um do outro apenas com intenção didática.
Bhairava (Śiva) assim explica no Vijñāna-bhairava-tantra:

न वह्नेर्दाहिका शक्तिः व्यतिरिक्ता विभाव्यते |
केवलं ज्ञानसत्तायां प्रारम्भोऽयं प्रवेशने ||१९||

na vahner dāhikā śaktiḥ vyatiriktā vibhāvyate |
kevalaṃ jñāna-sattāyāṃ prārambho’yaṃ praveśane ||19||

Não se considera a potência (śakti) da combustão como distinta do fogo.
Isso é apenas uma introdução para penetrar na realidade do conhecimento.

ou

यथालोकेन दीपस्य किरणैर्भास्करस्य च |
ज्ञायते दिग्विभागादि तद्वच्छक्त्या शिवः प्रिये ||२१||

yathālokena dīpasya kiraṇair bhāskarasya ca |
jñāyate dig-vibhāgādi tadvac-chaktyā śivaḥ priye ||21||

Assim como cada parte do espaço é percebida graças à luz de uma lamparina
ou graças aos raios do Sol, Śiva é percebido graças à Śakti, ó querida!

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Do tratado de āyurveda, chamado Aṣṭāṅga-hṛdaya (1.2.45), atribuído a Vāgbhaṭa, quando se aconselha o médico com relação à conduta diária (dina-caryā).

आचार्यः सर्वचेष्टासु लोक एव हि धीमतः|
अनुकुर्यात्तमेवातो लौकिकेऽर्थे परीक्षकः ||२.४५||

ācāryaḥ sarvaceṣṭāsu loka eva hi dhīmataḥ |
anukuryāt tam evāto laukike ‘rthe parīkṣakaḥ ||2.45||

“O mestre do sábio é o próprio mundo, em todas as suas atividades.
Deve-se segui-lo, sendo um bom intérprete do sentido dos eventos mundanos.”

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Um poema de Lal Ded, a yoguini da Caxemira:

Tu és o mundo celeste, tu és a terra,
tu és a noite e o dia, tu pairas no ar,
tu és o arroz, a flor e a água do ritual,
és tu em tudo: o que há para te ofertar?

Traduzido a partir da tradução inglesa de R.C. Temple, com consulta ao original Caxemire, transcrito por Braj. B. Kachru.
O poema em caxemire pode ser lido e ouvido em: “An Introduction to Spoken Kashmiri”.

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A Bhagavadgītā 2.71, com o comentário Gītārthasaṁgraha, de Abhinavagupta:

yā niśā sarvabhūtānāṁ tasyāṁ jāgarti saṁyamī |
yasyām jāgrati bhūtāni sā rātriḥ paśyato muneḥ ||Bh.G. 2.71||

Quem tem autodomínio está desperto naquela que é a noite de todos os seres,
a noite do sábio em contemplação é aquela em que os seres estão despertos.

yā sarveṣāṁ bhūtānāṁ niśā – mohanī māyā tasyāṁ munir jāgarti – katham iyaṁ heyeti | yasyāṁ ca daśāyāṁ loko jāgarti – nānāvidhāṁ ceṣṭāṁ kurute, sā muneḥ rātriḥ yato `sau vyavahāraṁ pratyabuddhaḥ | etad uktaṁ bhavati, – yeyaṁ māyā khalu, tasyā mohakatvaṁ nāmarūpaṁ sukhatantrābhāsanaṁ ca | tatra – lokaḥ prācyaṁ svarūpam asyā aparāmṛsyaiva dvitīyasmin rūpe nibaddhasmṛtir āste | yogī tu tad viparītas tadīyaṁ mohakatvaṁ tadunmūlanāya paśyati, sukhatantratāṁ tu nādriyate | paśyan samyakjñānī, mithyājñānopaghātāc ca sukhatantratānādaraḥ | paśyata eva sā rātrir iti citram | vidyāyāṁ cāvadhatte yogī yatra sarvo vimūḍhaḥ | avidyāyāṁ tv abuddhaḥ; yatra janaḥ prabuddhaḥ – ityapi citram ||71||

Naquela que é a noite de todos os seres, que é a māyā entorpecedora, o sábio fica desperto. Como ela pode ser afastada? A esfera em que alguém está desperto, em que realiza as diversas atividades, é a noite do sábio, pois ele ignora as ocupações convencionais. Assim se diz a esse respeito: a māyā tem certamente o poder de entorpecer, visto que é nome e forma, e também sustenta a aparência de ser um instrumento de prazer. Com relação a isso, a pessoa, ao conceber seu primeiro aspecto como a real natureza dela, prossegue com sua memória enredada no segundo aspecto. Mas o yogin é o oposto com relação a isso, ele a contempla para desarraigar o poder dela de entorpecer e não para reverenciá-la como um instrumento de prazer. Contemplando-a, como conhecedor verdadeiro, ao extirpar a concepção enganosa, ele desconsidera seu aspecto de instrumento para o prazer. “Ela é a noite daquele que vê”, esse é um ponto primoroso. “O yogin está centrado no conhecimento em que todos estão entorpecidos. E se mantém ignorante no desconhecimento em que uma pessoa comum está desperta”, esse é mais um ponto primoroso. (71)

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Em reverência a Abhinagupta, o último śloka do Dhyāna-śloka, um texto atribuído a Madhurāja, um aluno/discípulo de Abhinava:

श्रीकण्ठेशावतारः परमकरुणया प्राप्तकाश्मीरदेश:
श्रीमान्नः पातु साक्षादभिनववपुषा दक्षिणामूर्तिर्देवः ||

“Que nos proteja o glorioso deus Dakṣiṇā-mūrti, manifesto no corpo de Abhinavagupta,
essa encarnação do Senhor Śrīkaṇtha, que, por compaixão profunda, veio para Caxemira.”

O Dhyāna-śloka contém uma descrição que constrói uma imagem mental de Abhinava, no gênero de texto que serve para a contemplação. Possivelmente, é ele que tem servido para a representação visual do guru caxemire tal como vemos na imagem abaixo.

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अस्यां भूमौ सुखं दुःखं बन्धो मोक्षश्चितिर्जडः |
घटकुम्भवदेकार्थाः शब्दास्तेऽप्येकमेव च ||

asyāṃ bhūmau sukhaṃ duhkhaṃ bandho mokṣaś citir jaḍaḥ |
ghaṭakumbhavad ekārthāḥ śabdās te ‘pyekam eva ca || Tantrāloka, 2.19 ||

“Nesse mundo, prazer e dor, prisão e libertação, inteligência e tolice são palavras sinônimas,
exatamente da mesma forma que as palavras vaso e pote [querem dizer a mesma coisa].”

Esse śloka está presente no capítulo dois do Tantrāloka (de Abhinavagupta), dedicado ao anupāya. Anupāya é o acolhimento da presença divina inata (bhairava), por isso, é chamado de “método sem método”. Sinteticamente, o anupāya consiste num (não) método destinado àqueles que já se identificam com tal presença e que, com apenas uma instrução prévia, dispensam os outros métodos (upāyas) propriamente ditos.

Quanto ao sentido de subverter as dualidades, isso diz respeito ao pensamento monista do Śivaísmo da Caxemira. Nessa tradição, a luz universal (prakāśa), que é pura consciência (caitanya), integra toda a multiplicidade, qualquer que sejam as polaridades que a constitui. Na perspectiva da consciência divina, as diferenciações se dissolvem, não há porque apegar-se a um pólo ou outro.

No âmbito do adepto convencional, aquele que necessita de métodos, isto é, upāya e não anupāya, muitas das práticas sugerem que a percepção esteja voltada ao centro, que é onde as dualidades se integram e deixam de existir como tal.

13 thoughts on “Antologia para meditação II

  1. “Separa-se um do outro apenas com intenção didática.”
    Desde que eu li essa frase ta martelando na minha cabeça.
    Como assim? Até na meditação ela ta vindo me atrapalhar.
    Onde posso buscar mais sobre isso João?
    Namastê

    • Oi, Sati, adorei saber das marteladas.
      Seguinte: nessa tradição (shivaísmo da Caxemira), śakti e śiva são uma unidade. Por isso, essa linha de pensamento é chamada de monista.
      A coisa toda funciona assim, conforme está desenhada no yantra que postei junto do texto: há vários níveis de realidade, do mais denso ao mais sutil. Pense no centro do yantra como sendo o mais sutil e pense que, conforme caminha para a periferia, vai ao mais denso. No sutil há a unidade śiva-śakti. No denso, há a diversidade, em que śiva-śakti se manifestam de forma dual.
      O ponto é chamado bindu, onde os são apenas um.
      Quando falamos do nível sutil, se falamos na dualidade śiva-śakti, é apenas como meio de poder sentir que nessa unidade está tudo presente, seja corpóreo, seja espiritual. Como nossa mente gosta de analisar (que é dividir), falamos didaticamente em dualidade. Mas o que existe é o que o texto fala: os dois são indissolúveis, como o fogo e a combustão.

      Será que as marteladas vão parar? Ou vão se transformar?
      De qualquer forma, continue compartilhando suas marteladas.
      नमस्ते (Namaste!)

  2. Oi João,

    Amei a tua aula de ontem lá no Espaço Marcos Rojo.Por mim ,ficaria te ouvindo o dia todo…a semana toda…
    Espero ter mais aulas contigo.
    Namaste

    • Oi, Fatima, obrigado. Como você viu, eu também ficaria falando…
      até breve!

  3. Ola João

    Bom deixa eu ver se entendi, isso é de acordo somente com essa tradição, shivaísmo da Caxemira ?

    Pq o objetivo não seria elevar śakti em direção a śiva? Estão separados em quanto estamos em camadas mais densas de nossa realidade?

    Pelo q entendi a questão esta em superar as dualidades, e com isso tbm a dualidade de entender em separado. Se é assim, superar a dualidade é um caminho pra juntar śakti e śiva?
    Se bem q se eles não estão separados….
    É João… muitas marteladas pelo caminho…
    De qualquer forma tenho aprendido com o yoga q não é muito válido entender de forma tão intelectual as coisas…
    Agradeço João
    Namastê

  4. Oi, João…
    Depois que assisti a sua aula (e às que se seguiram), no curso do Marcos no sábado, fiquei com uma reflexão que retornou com a leitura desse texto… Se bem entendi o que vc disse, pois é realmente assim que sinto, tudo é manifestação divina, aspectos mais ou menos densos de uma única essência… Assim sendo, vejo com certa incoerências algumas ideias tão caras a quem se propõem “às buscas espirituais”…
    Pra nem cair na ladainha dos valores morais e sociais, vou tentar exemplificar com algo mais comum ao meio “yóguico”… Como posso falar em impurezas nesse contexto Śiva e Śakti? Observar as coisas como puras ou impuras não é tb um juízo de valor? O que pode ser realmente “impuro”, no sentido que usualmente damos a essa palavra? Parece-me que seria algo como dizer que meu intestino é “pior”, “menos nobre”, ou sei lá o quê, que meu coração… Isso realmente não faz sentido algum pra mim…
    Agradeço se vc puder me nortear!

    • De fato, Bia, é isso mesmo. É um tema complexo, mas não é difícil quando você entende que tantra é integração entre “anseio”, “conhecimento” e “ação”. Puro e impuro são categorias intranscendentes. Não há porque se apegar demais a essa dicotomia – o apego demasiado ao “puro” pertence à tradição dos rituais externos, é apenas “ação”, sem “anseio” e sem “conhecimento”. Entretanto, existem aspectos éticos a serem considerados, no sentido de que isso te trará não uma recompensa, mas uma possibilidade maior de se envolver com as esferas mais sutis da sua alma. Isso traz “conhecimento”. Ou seja, é dada importância sim à dicotomia “puro”/”impuro”, mas não no sentido passivo, de respeitar regras e tabus, como se isso elevasse alguém. Nas práticas tântricas, a consciência sempre está ativa, por isso é preferível estar em estado de presença, mais do que seguir esse ou aquele preceito. O aspecto do “anseio” entra aqui: enquanto uma prática não faz sentido para sua alma, segui-la dificilmente lhe trará algum benefício.
      É nesse sentido, em síntese. É importante, mas não é a única coisa, tampouco o que vai te elevar, se for seguido passivamente.

  5. Perfeito!… Entendo e sinto exatamente assim… É muito bom ver (ler) isso verbalizado, ajuda a organização interna! rsrs
    Tenho percebido o qto esse “seguir regras” acaba conduzindo à “enantiodromia” e não à integração… Acho até que, mais simples que a questão ética, entendo o “anseio” pelo mais sutil até como uma curiosidade latente, que se manifesta qdo pronta pra isso… De tão explorado e conhecido, o menos sutil já não basta, daí o surge o “anseio”, pois, qdo não é isso que move a tal “busca espiritual”, tenho sempre a sensação de que há apenas uma troca de nomes… Ao invés de desejar o paraíso, passa-se a desejar o samadhi; na verdade a busca é por um lugar quentinho e seguro, sentado ao lado de Deus, onde nada mais possa me ameaçar… Não é anseio por integração é desejo de superproteção…
    Grata pelo espaço de troca!

  6. Desejo por superproteção…
    Concordo, porque sinto, plenamente Bia.
    Por um acaso Shiva Shakti seriam apenas experienciaveis?
    A dualidade afinal só é negada/reprimida por toda esta moralidade que atulamente nos entorpece a ponto de nem pensarmos…ou melhor..de sermos pensados por um sistema doente…
    Posso ´´dizer´´que na pratica yogica a principal provocação é exatamente a de se quebrar estes condicionamentos entorpecedores,experienciando através da consciencia tanto nossa Luz qto nossas Sombras, e assim purificando-nos destes descaminhos, estarmos realmente Integros??
    E se sim…aonde entra o Tantra aí??rs
    ABS E NAMASTEE!!

    • Sim, Daniel, o tantra entra na etapa de integração da dualidade sombra/luz.
      A experiência de consciência plena exige que certos tabus sejam reabsorvidos como faculdades integrantes da vida.
      No entanto, esse caminho não implica em aceitação passiva de tudo que se pode oferecer aos órgãos dos sentidos.
      Muito do que as escolas tântricas propõem está relacionado à idéia de que é necessário vivenciar o mundo em estado de consciência plena, ou estado de absorção divina, o que é diametralmente oposto tanto aos condicionamentos, como à aceitação da materialidade como um fim em si mesma.
      É nesse caminho que vejo essa tradição…
      Tudo de bem pra você!

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