Yoga e ritual védico aos olhos de Vīrabhadra

Vīrabhadra é um nome de Śiva conhecido dos praticantes de yoga, uma vez que existe um grupo de posturas assim chamadas (vīrabhadrāsana). Esse nome provém de um episódio em que Śiva destruiu um ritual comandado por Dakṣa, para o qual não foi convidado. A ligação de Śiva com Dakṣa é a de genro e sogro, já que Dakṣa é pai de SatĪ, esposa de Śiva. Desse ato de exclusão, resulta a fúria de Śiva e sua manifestação como Vīrabhadra, que dá um violento fim ao ritual iniciado por Dakṣa.

Nesse relato se concentra uma característica sócio-cultural do yoga: a tensão entre yoga e tradição védica. Trata-se de uma condição histórica que pode ser entrevista no episódio mítico, segundo a qual yoga e tradição védica constituem práticas transmitidas por estratos sociais distintos. E também de uma distinção filosófica, já que a noção de ação ritual (karman), no yoga, terá características e objetivos bem diferentes daqueles que caracterizam os rituais védicos. A experiência pessoal é o fator mais fundamental para o adepto (yogin), que necessita de um mestre (guru), cujo papel é imensamente diferente do papel do brâmane. As percepções provenientes das práticas do yoga são de uma natureza distinta daquilo que se busca no ritual externo, executado pelo brâmane.

Há, no entanto, rituais com mais afinidade com o yoga do que o ritual védico – devido a seus preceitos integrarem um processo de reflexividade entre o devoto e divindade, entendendo-os como uma entidade só. Esse tipo de ritual tem como princípio a ideia tântrica de identidade entre a consciência individual (ātman) e a consciência universal (śiva). Já o ritual védico, no bramanismo tradicional, parte de outros princípios, deuses e homens permanecem essencialmente distintos antes e depois do ritual.

Algo notável na narrativa é o nome Dakṣa, que em sânscrito está relacionado à palavra “direito”, “lado direito”. Sabe-se que, na Índia bramânica, como na nossa cultura, o “direito” é tido como auspicioso e o “esquerdo” é tido como inauspicioso, vide as expressões “faz isso direito” ou “deixe de ser sinistro”. Essa concepção está arraigada na atividade ritual, que privilegia o lado direito e o sentido horário. A injunção de pegar objetos rituais com a mão direita é só a superfície de um imenso universo de tabus relacionados ao lado esquerdo. Muitos tântricos śivaítas subvertem esse modus operandi e utilizam o lado esquerdo do corpo justamente com o intuito de romper com a ilusão de que a oposição direito/esquerdo poderia deixá-los mais puros ou mais impuros, que são apenas polaridades de mais uma dualidade a ser ultrapassada.

Na narrativa, Śiva destrói o ritual de Dakṣa, o “direito”, aquele que personifica o tabu instaurado sobre o universo de coisas relacionadas ao lado esquerdo. Com isso, revela-se algo coerente com a prática do haṭha-yoga, que tem, na maioria das suas vertentes, o deus Śiva como guru. É ele quem transforma os tabus em totens (parafraseando Oswald de Andrade), é ele quem permite a construção de uma prática baseada em percepções renovadas e não em tradições estéreis. Por essa razão, um dos  caminhos do tantra é chamado de vāmācāra (via  esquerda). Trata-se de uma percepção de que é preciso descondicionar a mente de padrões ilusórios relativos à pureza ou impureza, para que a consciência atinja níveis superiores aos da vigília convencional. Nesse sentido, sair do lugar-comum é uma das grandes bênçãos que Śiva, através do yoga, pode conceder.

5 thoughts on “Yoga e ritual védico aos olhos de Vīrabhadra

  1. Olá professor João Carlos, gostei muito da leitura. Já havia lido este episódio no Ka do Roberto Calasso. Muito legal mesmo. Obrigado!

    • Oi, Delmar, obrigado pela visita! Bem lembrado, ótima dica: esse livro do Calasso é uma grande referência para quem quer conhecer o episódio ou saber mais sobre mitologia indiana. Até mais. Shantih!

  2. Adorei esse texto, João…
    E ele me remete a uma dúvida que já me acompanha há tempos. Talvez vc possa me ajudar…
    Sempre tive meus questionamentos com relação à interação “mestre (guru)/ discípulo”, pois parto do pressuposto da necessidade do contato com a verdade interna, ao que o seu texto se refere muito bem…
    Entendo claramente a ideia do “mapa feito por alguém que já percorreu certas trilhas” e reconheço a importância disso, mas minha questão é que não creio que essa relação, para que seja significativa como se propõe a ser, posso se limitar à transmissão de informações, e muito menos de “conhecimento”, pois esse vem de dentro pra fora, não?…
    Como se dá, portanto, de uma perspectiva mais ampla (“energética”, talvez seja a palavra), essa relação entre o preceptor e o aprendiz? O que acontece num plano mais sutil?

    • Olá, Bia, sim, você tem toda razão.
      As iniciações são, muitas vezes, avanços que o discípulo consegue obter graças à graça do mestre.
      Entenda-se como graça uma série de procedimentos que o mestre faz (pq sabe fazer/pode fazer) no conjunto corpo-prana-mente do discípulo.
      A tradição conta com esse fato. Sem ele, não há sucessão iniciática.
      O mestre passa por vários aprendizados, entre eles, o de saber conceder essa graça.
      Mas a tradição relata também que há quem receba isso também diretamente de Shiva-shakti, uma graça que vem da fonte primordial de todas as graças.
      Se quiser ir além, pesquise o que existe por trás dessas duas palavras: diksha e shakti-pata.
      Om namah shivaya!

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

*
*
Website