Tradução de João Carlos Barbosa Gonçalves, In “Celebração do mito no Gītagovinda de Jayadeva – apresentação e tradução do poema sânscrito segundo sua relação com as narrativas épicas”, dissertação de mestrado, FFLCH-USP, 2004. (Viṣṇupurāṇa – livro 5, cap. 13)
Ao terem visto a montanha Govardhana1, sustentada por ele, depois que Śakra2 partiu, os pastores falaram alegremente a Kṛṣṇa, agente infatigável: (1)
– Ó moço de grandes-braços, pelo senhor, com o feito de levantar do monte, fomos protegidos daquele grande perigo, e foi também nosso gado protegido pelo senhor. (2) Essa brincadeira de criança é desmedida, tua condição como pastor é intolerável, o ato do senhor é divino. Conta o que és, menino. (3) Kāliya foi subjugado na água; Pralamba3, derrotado; o Govardhana foi erguido: nossas mentes estão relutantes. (4) Verdadeiramente suplicamos aos pés de Hari, ó tu que tens passos incomensuráveis. Desde que presenciamos tua potência, não o consideramos mais como um homem. (5) Presenciamos também teu afeto por Vraja4, pelas mulheres, pelas crianças, ó Keśava5. Conseguiste realizar uma façanha, que semelhante nem mesmo pelos trinta deuses. (6) Quando se concebe tua infantilidade e tua força, com origem semelhante à nossa, ó Kṛṣṇa, ātman infinito, isso traz perplexidade. (7) Deus, demônio, yakṣa ou gandharva6. O que isso importa se és nosso amigo? Louvor a ti! (8)
Grande sábio, tendo os pastores dito isto, Kṛṣṇa ficou quieto por um instante, um pouco magoado, mas disse então: (9)
– Ó Pastores, se não causa vexame minha amizade, se sou louvável, qual o motivo para vossa inquietação? (10) Se tendes afeto por mim, se vos sou louvável, que vossa mente me compreenda como parente. (11) Não sou deus, nem demônio, nem gandharva ou yakṣa: sou nascido vosso parente e não há porque pensar de outra forma! (12)
Ó bem aventurado, assim ouvindo a fala de Hari, enquanto ele estava zangado, os pastores foram silenciosos de lá para a floresta. (13) Kṛṣṇa, vendo o céu imaculado, o resplendor da Lua de outono, os lótus abertos que perfumam o ar (14) e as encantadoras guirlandas com abelhas zunindo que enfeitam a floresta, decidiu desfrutar junto das pastoras. (15) Junto de Rāma7, Śauri8 cantou versos muito melodiosos, amáveis para as mulheres, em harmonia com o tantrin9 tocado de muitos modos. (16) Ao ouvirem o som encantador das canções, as pastoras deixaram suas moradas e foram depressa para onde o Algoz-de-Madhu estava. (17) Uma pastora cantou suavemente em harmonia com a música; outra, atenta, acompanhou mentalmente. (18) Veio uma timidamente dizendo “Kṛṣṇa! Kṛṣṇa!”; veio outra, cega de amor, tocar nele sem timidez. (19) Outra, vendo o venerável do lado de fora, ficou dentro de casa, e meditou sobre Govinda com olhos cerrados, em absorção completa nele. (20) Reduzindo o efeito dos atos auspiciosos com a alegria suprema da mente projetada nele e com cômputo dos feitos de transgressão totalmente dissolvido pela dor de não encontrá-lo, outra pastora, retendo o alento, atingiu a libertação pensando no criador do mundo, que é a forma do brahman supremo (parabrahma). (21-22) Cercado pelas pastoras, Govinda, com desejo de iniciar a dança rāsa, foi reverenciar a noite, encantadora com o luar de outono. (23) E foram grupos de pastoras, com os corpos absortos nos gestos de Kṛṣṇa, para outro local na floresta de Vṛndā onde ele tinha ido. (24) Com o coração pleno de Kṛṣṇa, assim disseram uma a outra: “Sou Kṛṣṇa, vejam meus passos, eu ando graciosamente”; outra diz “escutem minha canção, é de Kṛṣṇa.” (25) “Pare Kāliya!”, disse uma outra, “Eu sou Kṛṣṇa!”, movendo o braço para lutar, como no gesto de Krṣṇa. (26) Outra diz, “Ó Pastores! fiquem tranqūilos, não há perigo com as chuvas, eu levanto o Govardhana.” (27) “Que o gado ande à vontade, eu matei Dhenuka10”, diz outra imitando os trejeitos de Kṛṣṇa. (28) Assim ficaram as pastoras, prazerosamente distraídas nos gestos variados de Kṛṣṇa, brincando na floresta de Vṛndā. (29)
Olhando para o chão, uma delas, uma bela pastora, com o corpo curvado, arrepiada, com os olhos de lótus luminosos, disse: (30) Vejam esses passos de Kṛṣṇa, que passeia graciosamente adornado e deixa uma linha marcada com o gancho, a concha, o raio e o estandarte. (31) Alguma mulher de feitos auspiciosos, cujas marcas dos pés pequenos estão próximas dos dele, veio enternecida pela atração por ele. (32) Aqui decerto Dāmodara11 colheu flores na parte alta já que só há uma pequena porção na frente das pegadas do magnânimo. (33) Ela sentou aqui e foi enfeitada com flores por ele – Viṣṇu, reverenciado por ela na forma universal em algum outro nascimento. (34) Vejam: ele a deixou, muito altiva por ter sido agraciada com o arranjo de flores, e se foi por esse caminho. (35) Uma outra, incapaz de acompanhá-lo, indolente com o peso das ancas, foi rapidamente nas pontas dos pés para o seu encontro. (36) A amiga vai junto dele com os dedos seguros em sua mão e as pegadas mostram as marcas dos pés distanciados. (37) Desconsiderada pelo pouco contato da mão dele – de gesto enganador – os pés dela estão marcados em meia-volta, que retorna, desiludida e vagarosa. (38) Decerto Kṛṣṇa disse a ela “vou depressa” e “depois procuro você”, pois que as marcas dos passos estão apressadas. (39) Kṛṣṇa entrou na floresta densa, aqui os passos não aparecem mais. Voltem, já que este lugar não tem a claridade do luar. (40)
Sem esperança de ver Kṛṣṇa, as pastoras retornaram, foram à orla do rio Yamunā e lá cantaram seus feitos. (41) Então as pastoras viram a ele que vinha, com a boca que é como um lótus radiante, o protetor dos três mundos, o agente infatigável. (42) Uma viu Govinda que vinha e, muito oriçada, disse “Kṛṣṇa, Kṛṣṇa, Kṛṣṇa”, sem poder dizer algo mais. (43) Outra, marcando a fronte com a sobrancelha arqueada, olhou para Hari e, com as abelhas de seus olhos, bebeu no lótus da boca dele. (44) E mais outra, olhando Govinda com os olhos semicerrados, contemplando o corpo dele, mostrou-se absorvida em meditação. (45) Então Mādhava agradou a umas com falas amorosas, a outras com um olhar cativante, e a outras mais com o toque das mãos. (46)
Hari, de feitos sublimes, foi desfrutar da dança rāsa junto das pastoras, cujas mentes estavam agraciadas, mas a formação da roda do rāsa não pôde ser feita porque cada pastora quis ficar num único lugar, não pretendendo sair do lado de Kṛṣṇa. (47-48) Hari foi tomando a mão de uma por uma e formou o círculo do rāsa, com as pastoras de olhos cerrados pelo toque das mãos. (49) Então a dança iniciou com o toque dos braceletes em movimento, seguida da música com o canto dos versos dedicados ao outono. (50) Kṛṣṇa cantou em homenagem à Lua de Outono, ao luar, à flor de lótus, mas as pastoras, apenas uma única coisa muitas vezes: o nome de Kṛṣṇa. (51) Uma delas, envolvida na dança, pôs o braço, feito uma liana tinindo com as pulseiras palpitando, no ombro do Algoz-de-Madhu. (52) Outra pastora, artificiosamente versada nos cantos de louvor, de braços exuberantes, abraçou e beijou o Matador-de-Madhu. (53) Os braços de Hari, movendo-se para tocar o rosto das pastoras e para serem louvados, suspensos, com arrepios, ficaram tomados pela transpiração. (54) Enquanto Kṛṣṇa cantava muito alto uma música para a dança, elas cantavam duas vezes mais alto: “Kṛṣṇa, Kṛṣṇa é o Supremo!”. (55) Indo e voltando na roda, ficavam face-a-face: para um lado e para o outro, as belas pastoras amaram Hari. (56) Enquanto o Algoz-de-Madhu gozava junto às pastoras, cada instante sem ele foi considerado como milhões de anos. (57) As amadas pastoras, ainda que impedidas pelos maridos, pais e irmãos, deleitaram Kṛṣṇa durante a noite. (58)
O Matador-de-Madhu, o removedor de males, de essência incomensurável, concebido como um jovem rapaz gozou junto a elas por noites. (59) Ele é o Soberano cuja forma é a essência das essências, que reside em tudo, permeando todos os seres, os maridos delas e elas. (60) Assim como o éter, o fogo, a terra, a água e o ar estão presentes em todas as coisas, ele é a essência que a tudo permeia. (61)
NOTAS
1. Conta o capítulo anterior que Kṛṣṇa protegeu os pastores contra a fúria de Indra, que mandou chuvas destruidoras sobre os pastos de Gokula. Kṛṣṇa os salvou a todos levantando sobre seu braço o monte Govardhana e assim cobriu o povo e o animais das águas mandadas contra eles. A ira de Indra foi provocada por Kṛṣṇa, que convenceu os pastores que não o venerassem, e sim a montanha, já que esta é quem sustenta o gado e os pastores, e não o deus, que com as chuvas, sustenta a plantação e os agricultores.
2. Nome de Indra.
3. Nomes de demônios derrotados por Kṛṣṇa.
4. Nome da aldeia em que habitam os pastores.
5. Nome de Kṛṣṇa relativo ao episódio em que matou o demônio de nome Keśin.
6. Variedades de seres sobrenaturais.
7. Nome do irmão de Kṛṣṇa, Balarāma.
8. Patronímico de Krṣṇa.
9. Instrumento musical com três cordas.
10. Nome de um demônio derrotado por Kṛṣṇa.
11. “Cingido-na-cintura”, nome de Kṛṣṇa.
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